SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma nova pesquisa aponta que os dados oficiais do Brasil sobre estudantes com deficiências estão subestimados. Em vez de 3,7% dos alunos da educação básica, como registra o Censo Escolar mais recente, seriam 12,8%, de acordo com o levantamento.
Como o número total de estudantes brasileiros na educação básica é de cerca de 47,3 milhões, seriam, portanto, mais de 6 milhões com algum tipo de deficiência ou transtorno de aprendizagem, e não perto de 1,8 milhão, como mostrado nos dados oficiais.
Dessa forma, são quase 4,3 milhões de crianças e jovens não contabilizados em políticas públicas ligadas à educação especial e inclusiva, que devem envolver, por exemplo, a formação de educadores, a contratação de profissionais especializados para dar assistência aos alunos e a adaptação da infraestrutura escolar.
O estudo foi realizado pela Equidade.info, iniciativa ligada à Escola de Educação da Universidade de Stanford, dos Estados Unidos, com apoio do Stanford Lemann Center, que desenvolve pesquisas de políticas públicas para a educação brasileira, e da Fundação Itaú. A supervisão é de dois pesquisadores e professores de educação de Stanford, o brasileiro Guilherme Lichand e a norte-americana Elizabeth Kozleski.
A porcentagem de estudantes brasileiros com deficiências ou transtornos de aprendizagem levantada pela pesquisa, de 12,8%, é semelhante à dos Estados Unidos (12%) e está mais próxima à média internacional, segundo Lichand. Para ele, isso também torna a porcentagem da pesquisa mais factível do a oficial.
A disparidade entre o estudo e o Censo Escolar se explica, de acordo com Lichand, pelas diferentes metodologias aplicadas. No caso do censo, são as próprias escolas, 180 mil no total, que reportam os alunos com deficiências. Já a pesquisa realizou entrevistas com os próprios estudantes, além de professores e gestores, a partir de uma amostra representativa da realidade da educação pública e privada no Brasil.
“A pesquisa constatou que, em 80% das escolas, os questionários do Censo Escolar são preenchidos por um secretário ou uma secretária do diretor ou diretora da escola, sem que ninguém seja consultado, nem os alunos nem seus familiares”, diz Lichand.
“E, normalmente, esse funcionário só reporta os casos de estudantes que já tenham algum laudo médico. Não há nenhuma regra que diga que seria necessário um laudo para se reportar ao Censo, mas, na prática, é isso que acontece”, afirma o pesquisador.
Ficam de foram dos dados oficiais, desse modo, alunos com deficiência que ainda não têm um laudo, o que não é raro, considerando a realidade de famílias mais vulneráveis de escolas públicas. Além disso, existem várias dificuldades enfrentadas pelos estudantes que não seriam, necessariamente, passíveis de um laudo, mas que podem impactar significativamente o seu aprendizado e exigiriam atenção da escola, como a dificuldade de se escutar o professor ou de enxergar a lousa, por exemplo.
Alguns números ilustram bem esse aspecto. De acordo com o levantamento, 21% dos alunos relatam possuir alguma dificuldade para escutar o professor, mesmo quando estão sentados próximos a ele e com a sala em silêncio.
Já 5% dos alunos dizem que têm muita dificuldade ou que não escutam de jeito nenhum o professor. São 42% os que precisam perguntar a colegas o que o professor disse. E dois terços afirmam não ter apoio da escola para lidar com isso.
O problema de de enxergar a lousa é semelhante: 25% relatam ter alguma dificuldade para isso, mesmo quando estão sentados nas primeiras fileiras e usam óculos. São 5,7% os que dizem ter muita dificuldade ou não conseguem de jeito nenhum enxergar o quadro. E 73% afirmam não ter recebido apoio na escola para contornar essa dificuldade.
Além dos desafios físicos, a pesquisa questionou aos alunos se eles têm problemas de comunicação, compreensão e sociabilização, e 8,6% disseram que sim. Desses, 62% responderam que não recebem ajuda na escola para lidar com isso.
Adversidades como essas não são contabilizadas pelo Censo, segundo Lichand. “O Censo só contempla dez categorias de deficiências, e metade delas categorias é física, é um recorte imperfeito”, afirma. “Há muitos desafios não contabilizados pelo Censo, como a dislexia, que, internacionalmente, atinge 5% dos alunos.”
Para o pesquisador, um dos grandes problemas desses dados oficiais é que, no Brasil, há “uma visão medicalizada das deficiências e dos transtornos de aprendizagem”. “Essa abordagem essencialmente médica é restrita e desconsidera uma série de dificuldades dos alunos, o que negligencia o direito à aprendizagem”, afirma. “Em muitos países, a abordagem dos desafios dos estudantes passou a ser mais social, o que ajuda as escolas a se prepararem para atender necessidades específicas”.
A pesquisa foi realizada entre abril e maio deste ano, com uma amostra de 160 escolas públicas e privadas de todos os estados brasileiros. Foram entrevistados 2.889 estudantes, 373 professores e 222 gestores escolares. A margem de erro é de 1,8 ponto percentual para mais ou para menos, com confiança estatística de 95%.
Os questionários, segundo Lichand, foram elaborados a partir de modelos internacionais considerados referência nessa área, com adaptações para as diferentes necessidades dos alunos -no caso de deficiência intelectual, excepcionalmente, a pesquisa levantou o número de alunos com a escola, o que fez com que, nessa categoria, o resultado se assemelhasse ao do Censo (em torno de 3%).
“Realizamos diversas adaptações de perguntas, a depender da condição do estudante, como a utilização de imagens para auxiliar os mais novos ou aqueles que apresentam transtorno ou déficit de aprendizado”, conta Marta Vitório Barreto Dantas, pesquisadora do Equidade.info que atuou em escolas de Sergipe.
Da mesma forma que a escola tem que respeitar e se adequar às necessidades de cada estudante, os pesquisadores precisaram atuar com sensibilidade, conta Marta.
“Muitas vezes, realizei entrevistas deitada com o tronco na mesa, porque o aluno estava nessa mesma posição, e isso o deixava mais confortável”, diz.
“Quando percebia estar diante de estudantes com hiperatividade, antes de iniciar o questionário, eu lhes fazia perguntas sobre coisas triviais do dia para ter uma noção do estado emocional em que estavam e tentar deixá-los mais à vontade.”
No Brasil, no entanto, os professores não são preparados para esse tipo de atuação, e a falta de políticas de formação contínua para a educação inclusiva se coloca como um dos principais desafios. Praticamente a metade dos docentes (49%), segundo a pesquisa, diz não se sentir preparada para lidar com deficiências múltiplas dos alunos.
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