PATRÍCIA CAMPOS MELLO
OXFORD, REINO UNIDO (FOLHAPRESS) – “Para meningite, nós temos um tratamento e uma vacina. A malária mata muito mais gente, mas existe tratamento. Para pacientes com ebola, só podemos dizer que, se eles chegarem cedo [ao hospital], a família deles não vai morrer [contaminada].”
Foi com resignação que a infectologista italiana Livia Tampellini explicou a dificuldade de ajudar os pacientes com ebola quando recebeu esta repórter da Folha de S.Paulo no hospital montado pelos Médicos Sem Fronteiras em Kailahun, no interior de Serra Leoa, em agosto de 2014.
Era o pico da epidemia que matou mais de 11,3 mil pessoas na Libéria, Guiné e Serra Leoa. “[Se você vai para o hospital] pelo menos vai ter alguém te limpando, te dando algum conforto. Pelo menos você morre com alguma dignidade. Mas não muda o fato de que você vai morrer de qualquer jeito.”
Na época, muitos doentes se escondiam em casa por medo de hospitais. Com a mortalidade chegando a 80% em alguns locais, poucos saíam vivos dos centros de tratamento de ebola. E muitos médicos e enfermeiros, sem a proteção necessária, infectavam-se ao tratar os doentes.
Em Kailahun havia quatro ambulâncias para atender 480 mil pessoas. Cada vez que alguém adoecia num vilarejo, havia grandes chances de a família levar o doente de transporte público até o hospital, infectando ainda mais gente.
“Muita coisa mudou. Temos remédios, temos vacina e o tratamento dos pacientes melhorou”, disse Tampellini, em entrevista por videoconferência de Paris na quarta-feira (10), onde trabalha atualmente como responsável médica das operações de emergência dos Médicos sem Fronteiras.
Tampellini passou três meses na Guiné, três na Serra Leoa e dois na Libéria em 2014. Quando nos encontramos, tanta gente estava se infectando que eles temiam ter de fechar o centro de tratamento do MSF. Tampellini também estava com medo. “É saudável ter um certo medo. Quem não tem medo nunca é doido”, diz a médica de 47 anos.
Ela trabalhava todos os dias na área de alto risco do hospital para cuidar de pacientes com ebola, altamente contagiosos. Assim como enfermeiros e o pessoal que fazia a limpeza, seguia um protocolo rígido de segurança para evitar contaminação.
Usava um equipamento de proteção pessoal composto de um macacão de segurança amarelo, um capuz, óculos especiais, um avental, botas e duas luvas em cada mão.
Dentro dos macacões, a temperatura chegava a 46º C. Por isso, cada médico ou enfermeiro podia ficar até 45 minutos dentro da área de alto risco. Aí saía, fazia a desinfecção com água com cloro a 0,5%, tirava a roupa e descansava meia hora. Só então podia voltar.
Ao lado do fotojornalista Avener Prado, estive em Serra Leoa cobrindo a epidemia de ebola em agosto de 2014. No hospital de Kailahun, sentia-se um cheiro forte de cloro. Às vezes, o que vinha era um odor de sangue. Muitos pacientes em estágio final da doença sangravam pela boca, nariz e vagina.
Na época, Tampellini contou que tinha dois pesadelos recorrentes. Em um deles, ela estava em um vilarejo e uma pessoa com ebola vinha correndo e vomitava em seus pés. Em outro, ela sonhava que uma de suas luvas se rasgava, ela demorava a perceber e se contaminava com o vírus.
“Não sonho mais com isso. Estou em paz com o ebola”, disse Tampellini de Paris.
Ela voltou a Kailahun em 2021, quando eclodiu um surto de ebola na Guiné. A missão era preparar o sistema de saúde para uma possível epidemia.
O hospital da cidade estava mais equipado. “Eles usaram bem o dinheiro que receberam durante o ebola”. E a estrada até Kailahun, no coração da floresta desse país no oeste da África, foi asfaltada.
Depois de enfrentar o ebola na África, a infectologista ajudou seu país a combater a Covid-19. Ela foi para a Itália no início da epidemia, em março e abril de 2020, quando hospitais italianos estavam lotados de pacientes e o número de mortes explodia.
Tampellini conta que o vírus ebola era menos “eficiente” porque matava o hospedeiro muito rapidamente e só se transmitia por contato. Já o vírus da Covid se alastrou de forma vertiginosa, porque a taxa de mortalidade era menor e o contágio se dava pelo ar.
“Definitivamente, pode acontecer de novo. E quando tivermos uma nova epidemia de ebola, não teremos os medicamentos prontos e disponíveis na primeira semana”, disse Lívia. “Mas, mesmo com demora, teremos vacina e remédio. Temos como reagir.”
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